“Quase desenhos”, AS Studio, São Paulo, SP, 1997

São desenhos de chão, que parecem ter nascido do chão, e que só depois teriam se erguido e se constituído como planos, isto é, como representações. De fato, a condição frontal deles terá implicado todo um processo de amadurecimento e de estratificação das formas: são pesados, feitos de asfalto ou argila, materiais que não aderem facilmente ao plano, que são insuficientes para uma determinação formal mais incisiva, e cujo atributo principal é justamente o peso e essa qualidade mineral, sedimentar, de algo que está aí simplesmente porque não encontrou resistência a que aí ficasse.

Antes de ganharem a condição de representação há então apenas grandes manchas que agregam matéria; depois, mesmo quando tangenciam o mundo leve das formas, jamais chegam a uma autonomia completa frente a seu chão de origem. A representação é algo que aparece a custo, predominando nos desenhos a presença excessiva do asfalto ou da argila, e com ela uma percepção de peso, de empuxo para baixo. Por isso tudo é surpreendente que essas superfícies recobertas de uma matéria áspera e sem plasticidade conquistem a condição vertical e se franqueiem aos olhos afinal como um campo de representação.

Apesar do ponto de partida cego, em que as formas surgem do adensamento dessas grandes manchas, respondendo a uma primeira inteção de espacialização, vê-se que elas foram pacientemente redefinidas, corrigidas, e que a deposição das camadas de asfalto ou argila passou a obedecer a limites bem marcados, limites que lembram silhuetas de corpos gigantescos, quase inteiriços e tendendo à imobilidade.

Já que o gesto inicial do trabalho é esse espacializar meio cego, é preciso notar que o corpo é aí a medida primeira de todas as espacializações, o modelo inato de uma relação orgânica e articulada com o espaço. Quer dizer, tal gesto inicial de espacialização designa o primeiro movimento de um corpo que toma um lugar, logrando antes de qualquer coisa projetar-se para além de si, nesse lugar que entretanto só existe na relação a esse corpo que o projeta. Pode-se dizer, assim, que a preocupação mais geral do trabalho de Germana é repor o corpo em correlação com o espaço que ocupa, isto é numa escala e num regime de tempo que lhe garantam o aparecimento imperativo e pontual no espaço.

A despeito do aspecto monolítico e do caráter não imediatamente reconhecível dessas formas, estamos enfim diante de representações de um corpo e de seu lento desdobramento no espaço, ainda que este corpo deva permanecer numa situação limiar, entre submergir na superfície opaca e intransponível do asfalto e da argila e projetar-se virtualmente para dentro do plano. É essa ambiguidade, claro, o aspecto crucial do trabalho, o que indica que a figura do corpo é apenas divisada de modo sutil, sem jamais ser completamente alcançada; o que indica que ela surgirá como um processo e um aprendizado do que pode significar representar no universo da arte contemporânea, não um representar qualquer, mas o representar de uma imagem de si (e por meio desta conheceremos certamente o modo de inserção desse corpo no espaço, isto é, nada mais nada menos do que o modo como nos vemos interferindo e modificando nosso espaço real).

Os desenhos quase sisudos de Germana deixam claro que a representação do corpo que lhe interessa passa ao largo dessa facilidade ideológica de psicologizá-lo ao máximo, tornando-o a  eterna vítima de um ego sempre mais antigo e mais sábio que ele. Tal representação, problema central no trabalho da artista, não constitui dessa maneira um tema narcísico ou psicanalítico; caso assim fosse, estaríamos mais uma vez às voltas com essa linguagem confessional e reativa que tem envolvido a representação do corpo não só em grande parte da produção contemporânea, mas na cultura contemporânea em geral.

Pois  quanto mais a vida exigiu uma sociabilidade eficiente e maleável, de uma corpo puramente externo, que não se extenuasse e que fizesse da interioridade uma imperfeição doméstica, um dado de mau gosto ou um problema que não caberia extravasar dos limites estreitos da esfera privada, mais se tornou estridente e impotente a presença na arte desse corpo de fato obliterado. A tal ponto que ele só acaba aparecendo como a vítima, tão reinvindicativa quanto impotente, ou de modo reativo, como se observou.

Ao contrário, o corpo nos desenhos de Germana é uma positividade quase dogmática, sem ansiedades, sem reinvindicações, por isso também quase estático ou de movimentos lentos e tateantes, na contramão de um regime acelerado de tempo, recuado a um lugar mais estável e universal. É preciso afirmar, instaurar esse corpo, e ponto final. Ele terá uma dureza de pedra, e com isso uma qualidade de perseverar, de permanecer, que o torna mais potente que sua contingência. Jamais poderia ser desses que irrompe espetacularmente, reclamando as compensações do ego. Não é que ele seja olímpico ou que apareça como um corpo ideal. Na verdade ele aparece bastante palpável e mundano, sem pleitear qualquer singularidade pessoal, perfeitamente realista em sua atitude de esquivar-se do centro, de surgir como que de costas, ou como uma massa negra anônima, mal esboçando um princípio de articulação, apenas querendo afirmar sua densidade pétrea e sua capacidade de permanência contra esse espaço indiferenciado e sempre móvel ( sempre outro) que a envolve.

Se é evidente que essa representação suprime os traços fisionômicos do corpo (quase sempre, como se disse, temos a impressão de vê-los de costas, ou contra a luz, ou ainda de tão perto que é já um órgão, um membro que ensaia uma articulação, em todo caso, impossível de ser particularizado), sendo extremamente discreta mesmo do ponto de vista expressivo, não significa que não guarde uma interioridade, ainda que seja desse jeito mudo e áspero. Vê-se pelo desenho bem marcado  que se trata de uma forma buscada do corpo – essas superfícies não têm nada de espontâneo, de gestual; sugerem a construção gradual de uma figura, a retificação sucessiva de seus contornos, como se a artista estivesse perseguindo formas específicas, que talvez sejam as formas dessa interioridade.

Mas a questão do trabalho é justamente essa, não expor tal interioridade, fazer o corpo reativo e comportamental do mundo contemporâneo retroceder a um tempo histórico, para então poder reapresentá-lo em sua estrutura mais sólida, antropológica e suprapessoal, embora seja claro que o corpo a que aí se alude é contínua e diversamente  refeito na sedimentação de uma matéria contingente e corruptível.

Mais do que representar o corpo, pode-se dizer que os desenhos lidam com um problema de escala, de correlação desse corpo, já foi dito, como o espaço que o envolve. Daí se produzirem de um jogo de aproximações e distanciamentos entre uma figura e o lugar que ela ocupa no espaço, revelando esse corpo, indiferentemente, ou muito próximo dos olhos (quando é já uma interioridade) ou a uma distância absoluta, imerso numa geografia remota de grandes continentes, quando se revela inteiramente amalgamado a seu lugar.

A pergunta que esses desenhos se fazem poderiam finalmente ser esta: qual a escala correta para se representar o corpo no espaço, no lugar real que ele bem ou mal se assinala? Escala correta: a que permite que nos reconheçamos nesse corpo enquanto uma forma correlata a um espaço, isto é, que permite que nos vejamos como sujeitos de uma produção incessante de espaço externo, comporto da multiplicidade e infinidade das superfícies “externas” que constituímos em nossos deslocamentos, deslocamentos que por sua vez não deixam de ser também “internos”. Nesse sentido, os desenhos de Germana tematizam os limites mais externos e os mais internos desse corpo – a experiência da distância ou da proximidade absoluta, o desafio consistindo precisamente em ir atrás de um ponto de intersecção entre pólos tão extremos.