I

Os trabalhos de Germana Monte-Mór começaram a ganhar definição nos fins da década de 1980, começos dos anos 1990. Além de pinturas e desenhos feitos com asfalto, realizou também fotos de grande interesse e esculturas tateantes – pois buscavam meio desajeitadamente uma relação com seus desenhos e pinturas –, além de várias experiências com materiais, como parafina, chumbo, resina damar, mármore etc.

Contudo, ao tentar rememorar as muitas obras que já fez, tenho dificuldade de fugir de uma espécie de sedimentação escura feita de asfalto mais ou menos claro, depositada sobre papel ou tela, configurando aspectos geológicos ou orgânicos, em princípio elementos opostos entre si.

II

Não foi acaso o título escolhido para seu livro (“Da cabra”), nome incomum para um livro de arte. A estranheza se desfaz apenas quando, ao folhear a publicação, encontramos os versos de João Cabral de Melo Neto:

O negro é o duro que há no fundo
da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra,
No fundo da pedra, metal.

O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo.
que é a da cabra, esse animal
de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.

Os versos de João Cabral oferecem uma passagem metafórica – não poderia ser diferente, já que lida com palavras – entre seres vivos e orgânicos (a cabra) e seres minerais e inorgânicos (a pedra), ambos presentes, de formas distintas, tanto nas obras de Germana quanto no poema de João Cabral. A natureza rústica das cabras, sua capacidade de sobreviver em condições extremas de calor e frio, parece lhes conferir a solidez e a unidade das rochas.

O asfalto é um derivado do petróleo e não um mineral propriamente dito. Trata-se de uma combinação de hidrocarbonetos. Sintomaticamente, os antigos romanos, mais ligados à origem empírica desse material do que a seus subprodutos – gasolina, graxa, plásticos – não por acaso chamavam-no “óleo de pedra”, ou seja, petroleum. Desse modo, boa parte dos trabalhos de Germana também transita entre estados distintos da matéria, realizando menos metaforicamente a passagem entre o reino das coisas líquidas (a origem dos seres vivos) e o mineral.

Tanto o poeta quanto a artista visual têm um sentimento rente ao mundo material. João Cabral não substantiva um adjetivo (“negro”) à toa É a singularidade dos meios que empregam – palavras e matérias – que os distingue de forma acentuada, para além de qualquer juízo de valor. E então cessamos aqui as comparações para que a compreensão dos trabalhos de Germana avance um pouco mais.

Para que essa experiência mais material do mundo possa se tornar possível para o observador, é decisivo que as ambiguidades entre as várias aparências da matéria orgânica e inorgânica se mostrem a ele. Podemos saber que paralelepípedos usados no calçamento das ruas foram feitos a partir de blocos de granito. No entanto, sua geometrização – mesmo sendo meio tosca, pois ao menos no Brasil eles são feitos artesanalmente – conspira para que percebamos mais seus limites regulares do que sua rudeza mineral. Deixaram de ser rocha. Do mesmo modo, o que resta do couro de uma rês num sapato elegante?

Já os trabalhos sem cor de Germana oscilam sem parar. Seus limites são irregulares e remetem a formas orgânicas. Enquanto as superfícies de asfalto têm forte aspecto mineral. As áreas negras são fisicamente planas, embora opticamente sugiram uma profundidade enigmática. Como se faz com a borra do café, talvez se pudesse ler o destino de uma pessoa nessas películas.

Também algumas de suas séries fotográficas mantêm um forte vínculo com seus trabalhos de asfalto. As grandes pedras e os montes de sal expostas na Galeria Carminha Macedo em 2010 (“Pedra Mole”) insistem nesse paradoxo formal; de um lado, pedras excessivas, pois vistas de um ponto de vista baixo que as torna prestes a rolar ou a extravasar seus limites físicos. Já os grandes montes de sal sugerem a forma de grandes cones brancos… compostos de grãos mínimos e instáveis.

Na exposição “Luz negra” (2009, Galeria Anita Schwarcz), outra série de fotos aponta na mesma direção. Os seixos que repousam no leito de um riacho de águas cristalinas se mostram amolecidos vistos através da água. Trata-se de um fenômeno conhecido como refração da luz, que ocorre quando a luz passa de um meio transparente a outro, mas com densidades diferentes, mudando de direção. Quando colocado dentro de um recipiente com água, um bastão é visto de forma descontínua. Um nadador em uma piscina com as águas em movimento parecerá um homem de borracha.

Até esse momento, Germana apenas tirou partido de um fenômeno físico que quase todos conhecemos empiricamente. A presença de sua intuição artística se dará apenas quando ela fizer coincidir brilho (luz refletida) e refração da luz. Nesse momento, os seixos não só se deformam como perdem sua inteireza. Mais uma vez, observamos a artista perseguindo seus demônios, a querer provar com diferentes técnicas e materiais a existência de um fundo resistente em toda experiência da realidade.

III

Em apenas quatro exposições – Centro Universitário Maria Antonia (2002), Paço Imperial (2002-3), Bienal do Mercosul (2005) e Estação Pinacoteca (2005) – a artista fez experiências com cor. Ainda assim era um emprego tímido, já que elas tinham algo das cores leves da aquarela.

A presença mais luminosa das cores nesta mostra na Galeria Estação é um marco significativo na trajetória dessa importante artista contemporânea. Sem abrir mão daquela experiência difícil de um mundo que se recusa a se transformar em narrativa, Germana acrescenta a ele uma leveza, pois, ao suprimir, com as cores, um pouco de seu peso e de sua impenetrabilidade, torna-o mais generoso em seus contatos com a realidade circundante.

Com isso, os trabalhos também ganham uma nova dinâmica, diferente daquela sugerida pelo vitalismo orgânico das obras anteriores. Os desenhos se mostram com uma variação de planos mais rica, embora apenas uma ou duas cores por vez sejam trazidas à convivência com o asfalto. Por seu turno as figuras sugeridas pelas cores e pelo asfalto mantêm entre si uma relação menos harmoniosa.

Sugerem profundidades, provocam-se reciprocamente, pesam sem elegância, até que por um momento fugaz uma configuração predomina, mostra-se com mais firmeza e submerge, para tudo começar novamente. De algum modo essa descrição talvez servisse para retraçar em parte a própria trajetória de Germana Monte-Mór. A atração pela rudeza do mundo pode sugerir uma existência conduzida com dificuldade e privações, ainda que, como na obra de Van Gogh, leve a resultados extraordinários e exemplares.

Não estou nem de longe levantando a possível “compensação” de uma vida de recusas por meio de uma arte redentora. Muitos canalhas foram grandes artistas. Mas há artistas – e Germana Monte-Mór se inclui entre eles – para os quais a imaginação desempenha um papel secundário.

Nas artes visuais a “imaginação” o que é? Pode ser o mundo claro e luminoso inventado por Monet, mesmo pintando ao ar livre, “sur le motif”. Ou o visionarismo de um Odilon Redon ou Gustave Moreau. Por não ser uma impressão do mundo – como as verônicas, o Santo Sudário ou as máscaras mortuárias romanas –, uma obra de arte necessariamente passa pelo crivo das técnicas (ou meios artísticos) e por um esquema (a imaginação) que procura conduzir à realização das intuições sempre nebulosas dos artistas. Há momentos, porém – penso em Gustave Moreau, Odilon Redon, Salvador Dali e Max Ernst, entre tantos outros–, em que pintores, escultores etc. creem encontrar a liberdade absoluta da imaginação na suspensão de todo e qualquer travo da realidade.  Procedem como a pomba mencionada por Kant na “Crítica da razão pura”, que acreditava voar mais livremente no vácuo, quando é justamente o embate de suas asas com o ar que torna o voo possível. Curiosamente, alguns dos maiores pintores abstratos modernos – tomemos Mondrian e Pollock como pontos opostos exemplares – incorporaram a força da realidade de maneira notável. E em boa medida essa foi uma condição para a grandeza e pertinência de suas obras.

IV

Germana não tem a diversidade de trabalhos de, digamos, Mira Schendel ou Paul Klee. Mal comparando, Richard Serra e Amílcar de Castro também parecem ter perseguido os limites que um material (o aço) lhes possibilitava. E isso pode dar a impressão de pouca diversidade a suas obras. Dispensável dizer que os meios à disposição do norte-americano não estavam nem de longe ao alcance do brasileiro. Certa vez no Rio de Janeiro o próprio Richard Serra disse que Amílcar seria um artista de projeção internacional, fossem outras suas condições de trabalho.

Tenho a suspeita (mas não a certeza, pois seria necessário pensar mais profundamente essa questão) que os artistas mais movidos por esse sentimento áspero do mundo têm também uma menor margem de manobra, o que dificulta que sua obra tenha uma grande diversidade.

O conjunto composto por, entre outros, Van Gogh, Amílcar de Castro, Eva Hesse, Richard Serra e a brasileira Germana Monte-Mór, totalmente desconhecida fora do país e pouco conhecida mesmo entre nós – uma situação de que se deveriam envergonhar os galeristas – perseguem um rastro aparentado não necessariamente indicador de maior ou menor qualidade.

O que vejo de comum em suas poéticas é a talvez impossível incumbência de quase sem lançar mão da noção corrente de representação – mais apresentando esses materiais tão pouco afastados da realidade pela técnica do que os representando – fazer deles um poema lírico ou uma epopeia.