Centro Cultural São Paulo/Artistas convidados. Programas de exposições 95. 13 de Setembro a 8 de Outubro de 1995

Talvez por serem próximos do que é líquido, de pele instável daquilo que escorre, vaza, evapora e está à nossa frente apenas por enquanto, talvez porque não querem ter contorno, preferindo espalhar-se indefinitivamente, até que acabe a matéria de que são feitos, ou por terem  uma delicada grosseria, mistura de peso e de costura, de beleza e repulsão, há certamente amizade entre esses dois trabalho, e os lugares de onde falam têm um só contorno e geografia.

De fato, ambos parecem fincar os pés num território pantanoso, onde certas distinções não poderiam ser feitas. Creio que retiram grande parte de sua força da coragem de deixar emaranhados, sem individuação, opostos que nos acostumamos a ver hierarquizados. No caso de Germana Monte-Mór, trata-se do caráter amórfico que as noções de traço, de superfície e de fundo ganham em seu trabalho. De fato, a linha é larga, pesada e, mais do que isto, lenta demais para ser linha (daí que não haja propriamente gestos nestes desenhos). Aspira aquela dilatação de uma superfície, de uma região enquadrada no contorno do papel. Conforme se dilata, no entando, está sempre ameaçada de diluição pelo fundo que a recebe. Parece que vai descolar-se a todo instante de um papel ou tecido demasiado frágil e poroso, que no entando avança sobre o desenho com um ritmo inexorável de maré alta, comendo-o pelas bordas. O traço se torna, assim, uma superfície insustentável, e a poesia do trabalho está em clicar este limite, este momento em que o gelo se quebra. Daí que fracasse quando o entrelaçamento enlameado entre linha ou superfície e fundo se pacifica, exigindo destreza compositiva.  Sua força está em manter alérgicos uns aos outros os componentes do desenho.  Se às vezes o resultado é calmo (há alguma lembrança de paisagem japonesa nestes desenhos) é porque, como naquelas longas quedas de braço, forças intensas e contrárias também produzem equilíbrio. Mas o que faz sua grandeza é que percebemos ao mesmo tempo um certo rancor entre as partes, como siameses que desenvolvessem mútua antipatia. A memória que carregam de paisagem, de formas de animais, de órgãos sexuais, de camadas geológicas, herda a voltagem deste conflito entre elementos que supúnhamos nascidos uns para os outros. O resultado disso é uma violência pouco comum no campo do desenho, como se o demônio interno de cada elemento tivesse sido acordado.

Nas esculturas de Stela Barbieri, são as noções de interior e exterior que se confundem, o paradoxo de que entranha e pele, víscera e superfície sejam, se não idênticos, territórios sem conflito, alimenta todo o trabalho e responde pela fluência de suas soluções formais. Ao aproximar estes dois pólos opostos, o trabalho passa a querer tudo: nós, laços, sacos, materiais empilhados, coisas jogadas, amontoadas, penduradas, escorridas, coladas. Uma dilatação de idéia de forma acompanha a vizinha proibida do dentro e dîo fora; uma indiferença pelo que é aparência

Ordenada, indivuação de uma visão. Tudo aqui é passagem, casulo de outro casulo, pele desgovernada e faminta, em expansão aflita. A matéria varia de estado, exibe suas qualidades sucessivas, torna-se a pegada de todas as formas. O que dá interesse a estes trabalhos é sua plasticidade excessiva, como se pudessem receber  todas as operações. Há, nisso, uma mistura de potência expressiva e passividade extrema, que em seus melhores momentos parece apontar para uma compreensão trágica da vida, como se fazer e desfazer, liberdade e destino fossem o mesmo. Se nos trabalhos de Germana o irmanado discrepa, nos de Stela o discrepante se pacifica. O resultados destas operações aparentemente contraditórias é uma compreensão similar da arte como lugar de combate e conflito internos, a superfície tatuada de seus acidentes de percurso. Me parece particularmente interessante que não fujam para aquelas regiões fronteiriças entre os gêneros, adotando pela milésima vez o discurso de sua superação, mas permaneçam agarradas ao peso de desenhar, ao peso de produzir esculturas. A corporeidade intensa destes trabalhos, seu aspecto encarnado, sua presença exacerbada, encontram correspondência na decisão de operar dentro da arte, como se fosse preciso abraçar seu cadáver para poder ser artista.