Germana Monte-Mór trabalha com as mais variadas linguagens. Consegue resultados notáveis. O seu raciocínio, que inicialmente partia do modo como o desenho organiza o espaço, amplia-se, para objetos translúcidos, imagens fotográficas, esculturas, objetos. Na exposição recente, vemos muitos trabalhos realizados com técnicas diferentes. Embora individualmente eles revelem questões específicas, todos parecem compartilhar alguns princípios.

De maneira geral, todos estes novos trabalhos são superfícies. Mesmo os bancos são superfícies unidas que formam um móvel. A artista atua sobre estas, traçando marcas que dividem o plano ou o facetam em diversas áreas.

Nos melhores trabalhos, essas marcas partem de um ponto na margem e vão parar em outro ponto. Com isso, sugerem que a integridade do plano foi desfeita. Nas pinturas e desenhos isso é mais claro.

As obras sobre tela são pintadas com asfalto. A tela ganha uma cor poluída. A aparência é mais suja, irregular e espessa. De certo modo, lembra as áreas esfumaçadas dos trabalhos chineses tradicionais em nanquim e mesmo o amarelado de papel velho. Mas, como a pincelada é sinuosa, a marca se comporta como um rio a cortar esse terreno indeterminado. Assim, as marcas de pincel tentam contornar formas com a aparência esfumaçada.

Nos trabalhos sobre papel, algo parecido acontece. Curiosamente, no entanto, a artista sobrepõe à folha betumada uma faixa frágil de parafina que faz as vezes de pincelada. Essas superfícies são planos empoeirados, arenosos, com uma faixa sinuosa de parafina a cortar o que parece um solo a se formar em um lado e outro. Aqui, nesses desenhos, de cera existe algo de massas de terra, argila, asfalto (por que não?), barro, petróleo, lava, a se comprimirem.

Existe a impressão de um terreno a se constituir lentamente. Como se fosse o momento em que a Pangeia se dividiu, uma ilha tornou-se arquipélago. Mas, curiosamente, nada disso parece violento. Tudo se dá de maneira suave, como uma intervenção lenta, tranquila.O trabalho de Germana Monte-Mór não parece estar à procura de fraturas. As formas são bem constituídas, embora aconteçam em um lugar cheio de indeterminação. Como se tudo estivesse a ser feito.

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Os motivos de Germana têm algo de geológico. Os delgados relevos de chumbo irregulares, sobrepostos às superfícies negras de asfalto nos polípticos – que a artista faz desde o fim da década passada —, simulam linhas do horizonte e cadeias montanhosas. Eles sugerem que algo está a se formar num mundo onde antes não havia nem alto nem baixo, nem fundo nem raso. Simulam um relevo em um lugar escuro e empoeirado. Como o papel aparece em diferentes alturas, a sensação é de heterogeneidade. O horizonte passa a ser a única forma de ver nesse mundo cego.

Mais do que isso, parece existir certa decomposição geológica. Um movimento lento de uma matéria que decompõe e recompõe os lugares por onde andamos. Algo como os areais do deserto. As representações de Germana guardam familiaridade com aquilo que se esfarela, se cristaliza, torna-se fóssil. De uma matéria que perde a solidez para se tornar outra coisa.

As formas mais sólidas da pintura roçam as faixas pintadas como continentes que se diluem lentamente no mar. Por vezes tal diluição aparece como a retirada da solidez ou da rigidez das coisas. Em suas esculturas isso se expressa na contraposição entre os cortes curvilíneos e os formatos planos. Em outros momentos, como a tentativa de dar forma visível a dinâmicas instáveis.

Curioso como isso se revela em algumas das fotografias de Germana. Na série Âmbar, mostrada a partir de 2008, ela mostra as rochas de modos inusitados. Retrata o fundo pedregoso de riachos rasos. Pedrinhas cobertas por uma malha d’água tranquila e dourada pelo sol. A refração das marolas fazia com que o pedrouço ficasse mais curvo e líquido. Os contornos e as sombras que definiam a solidez de cada um dos corpos rochosos definham. A imagem torna-se ondulada. A água reflete as pedras e fica mais difícil definir o que está na superfície e o que está no fundo.

Essa sensação de impalpabilidade me parece um dos interesses centrais da fotografia de Germana Monte-Mór. Mais tarde ela realizou fotografias verticalizadas de queda d’água. A cascata aparecia centralizada em uma imagem frontal, margeada por uma alta parede rochosa. A solidez da pedra era desfeita pela cortina de líquido e fumaça da cachoeira, que desaguava em um lago. A imagem era de dissolução. De um fluxo que transformava o sólido em líquido e vapor.

Em outras imagens, os contornos parecem igualmente frágeis. A artista registrou cordilheiras de sal altas e abertas em 2010. Os grãos sobem nos altos montes como se se esparramassem em um chão todo informe, encardido, empoeirado. Ali também a forma parece se desfazer. A artista registra a tentativa de atribuir contorno a uma matéria volátil, de difícil controle.

Embora surja de maneira exemplar nas suas imagens fotográficas, essa questão sempre esteve presente no trabalho de Germana. Voltemos aos trabalhos recentes. Acredito que tanto a não aderência da parafina em terrenos sempre de alta indeterminação como a dissolução do plano de tinta indiquem um lugar volátil, difícil de controlar. Nos desenhos, o que parece nos dar alguma definição formal em meio à escuridão granulada do papel é a cera que a artista cola na superfície. As formas nos trazem a lembrança de recortes dos mapas. Mas, como a cera é frágil, tudo parece provisório. Uma tentativa de ordenar em um meio marcado pela adversidade.

Os planos das pinturas indicam coisa parecida. Diferentemente do que ocorre nos desenhos, a linha não define o que acontece no que é contornado por ela. O plano todo é sujo, de difícil orientação. A espessa pincelada não parece dar conta do escorrido de tinta que ocupa a tela inteira. Em um dos mais belos trabalhos, a pincelada forma uma alça. As duas pontas vêm no topo da tela, a curva quase na base. Essa curva é mais larga que as duas partes de cima, como se tivesse se alargado ao tentar segurar o que escorria da tela. Mas tudo pode se romper. É como aquelas linhas que sustentavam os altos bancos de areia. Os gestos se esforçam em inverter uma dissolução iminente. São vigorosos, tentam estabelecer um recanto, mesmo que momentâneo, em um ambiente adverso.

O ambiente contemporâneo muitas vezes exige de nós que passemos boa parte do dia, da semana, dos meses, nos alienando dos nossos desejos, das nossas necessidades mais primordiais. Temos mais contas a pagar e distâncias a percorrer do que espaços de convívio público.

Tais demandas nos fazem viver num fluxo em que as obrigações são constantes. Por isso, olhamos com tanto interesse os momentos que guardamos para nós. Eles acabam se tornando as boas lembranças em meio à vida turbulenta. Nós os identificamos como o lugar onde a vida acontece, onde fazemos nossas vidas.

A arte é um desses lugares em que podemos vislumbrar o mundo de outra maneira. Em que podemos dispor do tempo, dos objetos, das relações pessoais de uma maneira impensável nas condições objetivas da vida. Talvez o seu melhor exemplo seja a pintura matissiana. Feita com seus espaços de colorido intenso e decoração que se confunde com o vigor da natureza, lá nada parecia se curvar a necessidades de composição tradicional.

Germana Monte-Mór vive em outra época. Mas também parece buscar esses recantos. Buscar formas que tentam se livrar de exigências exteriores a elas, impositivas. Em seu trabalho não tem padrão, não tem decoração, tampouco cor. Ele acontece em espaços repletos de fendas, onde a integridade dos corpos é corrompida a toda hora. É discreto, feito de cores brutais, rígido como minério. O cenário em que ele se realiza é parecido com o que descrevem os teóricos da alienação moderna. No entanto, o esforço da artista é traçar, em traços por vezes largos e pesados, áreas onde a vida não foge de nós, e por alguns instantes parece não nos exigir nada, mesmo que logo depois nos passe a rasteira.